domingo, 3 de novembro de 2013

Agustina Bessa-Luís e a inexistência do amor

“nasci adulta e morrerei criança”, disse ela. Agustina carrega a dor de crescer como um dente que perfura a gengiva para surgir depois da superfície, além da carne. Agustina utiliza o irónico para penetrar o real, dividindo-o, individualizando-o. mas nele não habita porque foge ao tempo e ao espaço. Agustina inquieta-se porque quer comunicar. Agustina ironiza porque é caprichosa. e cáustica. e ácida. Agustina questiona, sem obter descanso na resposta. Agustina problematiza o absurdo porque lhe serve de bengala para explicar o contraditório. Agustina é mulher porque veste a feminilidade para despir os pré-conceitos do feminismo. Agustina não faz amor porque se deixou possuir pela ideia da amargura. Agustina sugestiona a paixão, como coisa viva que massacra. Agustina dispensa o homem viril porque tem força primordial. Agustina é indomável como qualquer criança antes de aprender  a contenção  Agustina evoca a culpa para crescer. como princípio moral, estruturante. mas Agustina ri. como uma criança.

Agustina Bessa-Luís, menina burguesa e caprichosa, escreveu dezenas de livros de 1948 a 2006. Vive ainda. Mas poderia morrer que viveria mais.Agustina foge do convencional para se sentir normal. Agustina genial!

terça-feira, 7 de junho de 2011

Kafka ou o mosquito tornado bactéria

quando os poros transbordam de desordem, instala-se a bactéria. quando a solidão invade, resta o absurdo. quando a emoção escasseia, permanece o real.
sempre que penso ou releio kafka, fico assim: imóvel, transfigurada, qual pintura de el greco.
a escrita de kafka assemelha-se a uma falha num quadro cubista (digo eu que detesto figuras geométricas!). falta-lhe realismo. mas falta-lhe também abstracção. com o detalhe geométrico, exaustivo, presente nas suas obras. e com o registo imparcial, mas persecutório (sempre o “eu” vitimizado). e depois vem a fuga para o absurdo (ou será do absurdo?).
houve quem o caracterizasse como um homem alegre, apesar da sua obra recheada de personagens principais masculinos, quase sempre envoltos em teias burocráticas penalizadoras. sufocantes. desesperantes. alienantes.
e sempre sozinhos, padecendo de solitude. e sempre com a angústia e necessidade de fuga que a acompanha. e nunca a metamorfose com consciência.
falta poesia neste texto. mas hoje o insecto é o mosquito com a bactéria que contamina. e eu deixo. e digo não à metamorfose feita ingenuidade.
a mosca é demasiado inofensiva. e a metamorfose uma infeliz impossibilidade.
deixo-me permanecer. deixem-me permanecer e não me alterar. reformulo: deixem-me mas não me larguem.
gosto de kafka porque não sabe morrer. não sei se soube viver. apesar de.
repito: gosto do kafka.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Fernando Pessoa, o estrangeiro (des)integrado

se camus, escritor argelino existencialista, encontrasse pessoa no andar defronte à tabacaria, perguntar-lhe-ia “donde és, amigo?”, ao que pessoa responderia ”sou daqui, mas vou mudar-me”!
fernando "viajado", fernando desdobrado, fernando desintegrado, fernando à procura de companhia.
encontrou álvaro, futurista revoltado. encontrou alberto, poeta camponês. encontrou ricardo, bucólico harmonioso, a quem não assassinou a biografia. até encontrou bernardo, o quase-fernando, quotidianamente fragmentado.
no fim, permaneceu no seu quarto de hospital, sozinho, fatalmente cirrótico. mas nunca foi com o fígado que viajou, ainda que no interior de quatro paredes!
terá sido fernando demasiado criativo? terá sido um solitário angustiado? terá sido um neurótico obcecado? terá sido um egocêntrico patológico?
não sei, mas pergunto. mas para quê, se nem sequer me interessam as respostas?!
desta vez não vou comparar nada, absolutamente nada. não vou dar de mim, não vou caracterizar-me. não vou desdobrar-me. não vou procurar-me.
apetecia-me apenas estar defronte à tabacaria e dizer, sem metafísica, sem náusea e sem que a pequena me ouvisse:

come chocolates, pequena, come!
pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!


domingo, 9 de janeiro de 2011

Herman Hesse e o Descontentamento Feliz

e se sofrer por amor não doesse? e se o conformismo se assemelhasse a um melancolismo ligeiro, levemente agradável? e se o cíume não revelasse qualquer sentimento de posse? e se o amor fosse apenas contemplativo? e se a espiritualidade se encontrasse em tudo o que move? e se a ternura permanecesse em nós? e se a solidão não nos afastasse dos outros? e se a arte fosse redentora?
Herman Hesse, escritor alemão, questionou-se sobre tudo isto. com nostalgia. e que sentimento este tão (in)feliz! digo eu, aquela que o transporta e alimenta...
escreveu sobre a fragilidade da condição humana. sobre o amor, nem sempre correspondido. sobre a sublimação da vida, através da arte. sobre a criação artística, decorrente da privação sentida. sobre a melancolia, fonte inspiradora. sobre a deformidade, que castra o corpo. sobre as viagens interiores, em busca de significado(s). sobre a ternura, força conciliadora. sobre a amizade que, fingindo curvar-se sobre o amor, prevalece e derrota-o (não, não pode ser!). tal como ele, questiono-me. ao contrário dele, revolto-me.
Hesse, para mim representa o grito contido. e eu quero a voz, a vomitar o som. mas escrevo. e escrever dói. arranha. cicatriza. e às vezes reconstrói. questiono-me se estarei feliz ou apenas (des)contente.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

António Lobo Antunes, esquizofrénico ou genial?

confesso que deixei de ler Lobo Antunes. pela depressão (a dele ou a minha!?). pelo odor a hospital que emana dos seus livros.
admito que até ao oitavo livro me seduziu a complexidade e densidade psicológica dos seus textos, a sobreposição de narrador, de tempo, de espaço, das personagens.
tal como num poema cantado pela Amália,  senti com a leitura dos seus livros, a “voz de móvel que estala”. e eu gosto de estalar, apesar do medo.
quem é este homem perturbado que escreve sobretudo sobre si próprio, ferido no cerne da seu percurso burguês?
que vozes são essas que ferem, que invadem o sentir com um manto de disfuncionalidade?
que traumas são esses que impedem o crescimento? que amor é este, tão impossível? que tempo é este, tão labiríntico?
ele aguarda respostas. eu deixei de esperar . ele suja a realidade. eu quero a fantasia.
provavelmente ele é genial. e eu? eu quero as minhas vozes. quem dera que fossem limpas!

domingo, 5 de dezembro de 2010

José Luis Peixoto, jovem escritor velho

acabei de ler “Livro” do José Luís Peixoto. como é possível sentir-me tão identificada com um autor, com as suas palavras? a resposta está na sua prosa poética e visceral, qual aparente contradição!
acompanho há muito a obra deste jovem escritor velho. velho sapiente nas palavras mas não gasto na idade. nem na vida dos livros, qual eternidade!
pela mão da morte e do luto, juntei-me a ele e falei-lhe do voo das palavras apetrechadas de asas que o seu livro “Morreste-me” trouxe até mim, também órfã de PAI.
veio depois o fascínio pelo seu estilo inconfundível, suavizado no tempo, agora com menos sangue, untado com a mesma dor. talvez que o que nos une seja isso mesmo: a dor!
nos seus livros povoam personagens surreais, cenários grotescos, perdas (i)rreparáveis, trajectos de vidas reais. a memória. a velhice. acontecimentos marcantes, na pele, no corpo. e o amor, cru, sexual,  quase sempre correspondido.
é grandiosa a sua capacidade de nos levar a olhar para dentro, antes da pele, antes do corpo. antes e depois da dor. lá dentro, do lado de cá. e nesta língua tão nossa, enriquecida com este português: escritor grande!






domingo, 28 de novembro de 2010

Do Saramago, que nunca tarda em desaparecer

quem me conhece sabe o quanto admiro as qualidades literárias do Saramago, as horas de leitura que às suas obras dediquei, o quanto as divulguei a amigos, colegas de trabalho, aos menos amigos também...
hoje fui ver, finalmente, o documentário "José e Pilar". fica registada, para mim, a dependência emocional e funcional relativamente à sua amada, Pilar del Rio. Fica o homem apaixonado, o homem que teme apenas a perda da sua mulher, o homem que teima em desacreditar Deus, o homem que fez perdurar os ideais comunistas e com os quais, não os partilhado, eu disse "quase"! quase me convenceu...
mas é sobre o escritor tardio que agora quero falar. sempre me impressionou a ignorância e o desconhecimento das pessoas face à escrita do Saramago. que o seu estilo é monótono, que não usa pontuação adequada, que é polémico, transgressor, espanhol. refuto. é transgressor, porque o mundo avança desarrumando-o. é polémico, porque a coragem demonstra-se. não é monótono, porque a sua escrita alimenta-se de oralidade, suspense e antecipação. e, caros leitores, a pontuação existe e é correcta. ah e foi português até ao fim das cinzas e ponto final. parágrafo.